Até 1520 a maior igreja do mundo, catedral fica localizada no coração simbólico de Istambul
Por 1.483 anos, a magnífica Hagia Sophia povoou sonhos de conquistadores. Catedral bizantina e centro do cristianismo, foi brevemente católica, por quase 500 anos uma mesquita e, desde 1935, um museu simbolizando a secularização da Turquia.
A igreja, até 1520 a maior do mundo, situa-se no coração simbólico de Istambul -a antiga Constantinopla, joia da coroa da expansão islâmica, que a tomou em 1453.
Agora, mais um homem busca marcar sua linha do tempo: o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que transformou nesta sexta (10) a Santa Sofia, ou Santa Sabedoria (seu nome latino), novamente em uma mesquita.
O Conselho de Estado, o principal tribunal administrativo do país, decidira horas antes que Erdogan poderia cumprir seu desejo. A corte havia deliberado sobre o tema por 17 minutos no dia 2 passado, uma mera formalidade.
Tribunais superiores turcos são alinhadas ao poder central -o Conselho já tomara decisão semelhante sobre outro museu-igreja-mesquita em 2019, e Erdogan defende há anos a reconversão.
Restará agora só as queixas, principalmente fora do país, começando pela rival histórica dos turcos, a Grécia.
A Igreja Ortodoxa Grega alertou que transformar a sua antiga sede patriarcal em uma mesquita em pleno século 21 seria uma "inaceitável violação da liberdade religiosa". O Ministério da Cultura disse nesta sexta que o ato é "uma provocação".
Mas demandas gregas caem em ouvidos moucos na Turquia, como a divisão de Chipre atesta, mesmo ambos os países sendo parceiros na Otan (aliança militar ocidental).
Já da Rússia de Vladimir Putin vem um protesto mais nuançado. O patriarca ortodoxo russo, Cirilo, exortou Erdogan a deixar as coisas como estão, vendo "uma ameaça à espiritualidade e à história".
O Kremlin também pediu sabedoria ao misto de rival e aliado, dando a devida atualização geopolítica a uma disputa antiquíssima.
O Império Russo (1617-1917) rivalizava com o Otomano (1299-1923) não só estrategicamente, mas também culturalmente.
Constantinopla fora, até 1453, o coração do mundo ortodoxo -até hoje decisões do patriarca de lá têm peso enorme, apesar de Cirilo ser o líder do maior contingente do grupo, 300 milhões de pessoas.
A ortodoxa Moscou herdou o banzo da derrota para os muçulmanos. A capital otomana era chamada pelos russos de Czargrad (cidade do czar), e, se o país tivesse vencido a Guerra da Crimeia (1853-56) contra turcos e aliados europeus, talvez tivesse sido assim renomeada.
Voltando a 2020, há uma parceria turbulenta entre turcos e russos acerca dos rumos das guerras civis na Síria e da Líbia, onde apoiam lados opostos.
Fatores energéticos contam, como o recente gasoduto ligando os dois países demonstra. Apesar de quase terem se enfrentado de fato no começo deste ano, os turcos compraram sistemas antiaéreos sofisticados de Moscou.
Isso desagradou aos EUA, nominalmente aliados, que por sinal não estão nada felizes também com a retomada islâmica da Hagia Sophia.
O secretário de Estado, Mike Pompeo, foi a público pedir para que Erdogan reconsiderasse a ideia.
Como no caso grego, o americano foi ignorado. O turco não perdoou Donald Trump por não ter extraditado o clérigo a quem ele acusa pela tentativa de golpe que sofreu em 2016.
O aniversário da intentona será na semana que vem, no dia 15. Nada melhor para Erdogan asseverar o poder que já exerce há 17 anos como principal ator político da Turquia.
Essa é a chave mais imediata da questão Erdogan está com seu partido, o AK (Justiça e Desenvolvimento, na sigla turca), em baixa.
No pleito local de 2019, perdeu o controle de Istambul e Ancara, e dois ex-integrantes do governo lideram agremiações de oposição que buscam derrotar Erdogan em 2023.
Pior, eles apelam ao eleitorado mais religioso que forma a base de apoio do presidente.
A economia está em dificuldades devido à pandemia da Covid-19, que infectou mais de 200 mil turcos, logo quando se recuperava do tombo da crise monetária de 2018.
Ao longo de seu reinado, como premiê até 2014 e presidente, depois, Erdogan sempre usou sentimentos religiosos na hora da crise.
No poder, a islamização da sociedade e das instituições cresceu, para horror dos aderentes do caráter secular dado ao Estado turco pelo seu fundador, Musatafá Kemal Atatürk (1881-1938).
Além disso, Erdogan sempre buscou símbolos que o associassem à era de ouro otomana.
Recapturar simbolicamente o símbolo máximo da conquista islâmica, agora contra um duplo inimigo (o Ocidente e o secularismo), é um passo lógico.
Em 2016, foram feitas as primeiras preces islâmicas desde 1935 no prédio, e em 2018 o próprio presidente comandou um ato religioso na Hagia Sophia. Em 2019, pediu oficialmente a retomada.
Assim, aos 66 anos, Erdogan tenta beber na fonte do jovem sultão Mehmet 2º (1431-82), que com 21 anos conquistou Constantinopla após um cerco de 53 dias.
Na tarde de 29 de maio de 1453, Mehmet adentrou triunfante a arruinada cidade. Às portas da Hagia Sophia, fez um ritual de humildade e, ajoelhado, jogou terra sobre seu turbante.
Ao entrar na igreja, sua primeira ação marcaria o próximo meio milênio: após quase matar um soldado que tentava arrancar mármores do piso, ordenou que um sacerdote entoasse a prece central do islamismo, a Shahada.
Hagia Sophia virou uma mesquita ali, e assim permaneceu até fevereiro de 1935.
No novembro anterior, Atatürk havia dado seguimento à sua política de ocidentalização do Estado que fundara em 1923 e decretou que diversas igrejas convertidas virariam museu -a antiga catedral à frente delas.
Aquela foi a terceira mudança de função do prédio.
Além da conversão em mesquita, em 1204 houve o que o historiador britânico Roger Crowley definiu como "um dos episódios mais bizarros da história cristã" em seu clássico sobre a queda de Constantinopla, "1453".
Cruzados venezianos tomaram a cidade dos bizantinos e estabeleceram um reino próprio, que durou até 1261. No período, Hagia Sophia foi uma catedral católica romana.
Do ponto de vista artístico, o movimento de Atatürk foi um sucesso. Mosaicos fabulosos escondidos por séculos de argamassa foram revelados. Em 1985, o prédio virou patrimônio da humanidade.
O que ocorrerá com eles é uma dúvida. A mesquita grandiosa situada à frente do prédio, Sultão Ahmet ou Azul, nasceu deste modo em 1616 e lá está até hoje.
Turistas podem frequentá-la fora de horários cerimoniais, com os devidos cuidados religiosos. Mas lá não há mosaicos cristãos a ofender a sensibilidade de puristas islâmicos, como na Hagia Sophia.
Como parece impensável vê-los cobertos de novo, uma solução terá de ser encontrada.
O porta-voz de Erdogan, Ibrahim Kalin, havia dito na quinta (9) que a eventual reconversão "não diminui a identidade histórica" do prédio pois "mais pessoas a visitarão", mas não citou os mosaicos.
Há um fator econômico adicional para a decisão final: antes da pandemia, o museu era a principal atração turística do país, com 3,3 milhões de visitantes em 2019.
O caldeirão multiétnico da região sempre teve no prédio um ponto focal. Como conta Crowley, só em 1853 os bizantinos passaram a ser chamados assim em língua inglesa.
Herdeiros do império centrado em Roma, faziam questão de se chamar de romanos, embora o grego fosse a língua franca na época da queda e seu imperador, meio sérvio e um quarto italiano.
O mesmo se via do lado vencedor, com a miríade de povos sob a bandeira otomana que vinham dos Bálcãs e da Ásia Menor. "Turco" era um modo europeu pejorativo de chamá-los.
Agora, Erdogan visa reforçar o caráter islâmico de uma sociedade que, como nos seus últimos 567 anos, vive entre dois mundos.